BESSA-LUÍS, AGUSTINA (1922-). Romancista portuguesa, autora de mais de sessenta obras, entre as quais Mundo Fechado (1948), A Sibila (1954), Fanny Owen (1979) e a trilogia O Princípio da Incerteza (2002). Agustina Bessa-Luís visita Macau no final dos anos (19)80 e publica posteriormente o texto “A Pedra Pintada”, na secção “Crónicas de Macau” da Revista de Cultura (1990) e o romance A Quinta Essência (1999). A História de Macau marca presença em ambos os textos narrativos, sendo fruto da vivência que a escritora experiencia no enclave. A reflexão ficcional de “A Pedra Pintada” apresenta a História da Cidade do Santo Nome de Deus, desde a rápida viagem dos lusos pelos mares até ao início da mercancia e evangelização no enclave, altura em que o príncipe Ko Tsing autoriza os portugueses a permanecer em território chinês como estratégia de combate aos piratas, tendo assim Macau surgido de um acordo de cavalheiros. A narradora, após uma elipse de vinte anos no túnel do tempo histórico do território, descreve a paisagem humanizada da povoação, cujo espaço exótico, no momento da escrita, é precioso e alugado à hora. O texto evoca imagens e topoi do passado da urbe, como os pescadores, os vendilhões, as concubinas e os mandarins, concluindo que a época da poesia desaparecera na Macau progressista, que, durante muito tempo, lutara contra a presença comercial de rivais europeus que não sabem perder tempo (em lazer) como os lusos e os chineses. O tempo na “terra poética” é uma preocupação central do texto, visitado do ponto de vista chinês e português e contraposto à vivência de Hong Kong, à distância de uma viagem de jet-foil e onde imperam o chá e o formalismo ingleses na época natalícia. As casas de Macau produzem dinheiro em larga escala, mas a cidade é também uma terra de poesia, evocada nos passeios de transeuntes com gaiolas de pássaros nas mãos e no sorriso da mulher oriental, “um reino à parte”. Nove anos mais tarde, Agustina Bessa-Luís publica o romance Quinta Essência, no qual o narrador reflecte sobre mundos já desaparecidos, remetendo para a imagética do clássico chinês O Sonho no Pavilhão Vermelho, da autoria de Cao Xueqin 曹雪芹, “um dos maiores escritores do mundo”. Este clássico chinês, entre outros, é também referido várias vezes no romance de Agustina, que vive do jogo anacrónico e metaficcional de analepses (históricas), em forma de comentários e paralelismos temáticos, prolepses e inúmeras personagens que o povoam e conquistam e se deixam seduzir através das histórias da história de Macau, daí o significado do conceito-expressão que dá título ao romance: “Chama-se a isto a Quinta-Essência [da natureza humana], a região do fogo e do amor”. Para além da história de José Carlos, protagonista viciado na imortalidade, o texto apresenta-nos também uma representação da presença portuguesa no enclave. Em entrevista que concede a Rogério Miguel Puga (Lisboa, 8 de Junho de 2003), a romancista confessa “dever” este livro a Macau desde que o Governo do Território a convidara a visitar o mesmo, não lhe tendo, na altura, “apetecido” escrever nada sobre a cidade, ao contrário do que sentiu durante o período da transição da soberania para a China (1999), quando começa a redigir a obra e vai “descobrindo muitas coisas lá escondidas, na história”. Ou seja, o processo de construção do romance acaba por ser também uma revisitação do enclave, uma (re)descoberta. A obra retira partido de objectos exóticos trazidos de Macau por (parentes) antepassados para Portugal, bem como do movimento dos jogadores a viajar no jet-foil de Hong Kong, estabelecendo-se assim paralelismos intertextuais entre os dois textos que a autora redigiu sobre a Cidade do Santo Nome de Deus. A linhagem de personagens como Siara Debra estende-se ao longo da História de Macau – plataforma comercial e de evangelização –, por entre acontecimentos ficcionados que sustentam o tecido ou a rede de significados e significantes do romance. O protagonista, José Carlos Pessanha, rumo à sua “aventura macaísta”, nos anos (19)80, chega a Macau, “uma espécie de Eldorado em que a terra fértil era a mesa do jogo. […] Dizia-se que a nau Flor do Mar […] que Afonso de Albuquerque capitaneou, afundada ao largo de Samatra, nunca foi retirada do seu sepulcro de lama porque não trazia senão pérolas e ouro”. Imagens, referências, personagens e motivos literários associados ao enclave acumulam-se ao longo dos sete capítulos, nomeadamente a Guerra do Ópio; Camões; Tomé Pires; João de Barros; Fernão Mendes Pinto; S. Francisco Xavier; Matteo Ricci; Manuel Bocarro; Lord Macartney; António Sérgio; piratas e santos; Lampacau; a fonte do Lilau; o Templo da Barra; os macaenses; as nhonhonas; o Hotel Bela- Vista; Hong Kong; as casas da Macau “vitoriana”; as poderosas tríades; o ma-jong ou mah-jongh (majiang 麻將); as Companhias das Índias europeias; a miscigenação; os relatos de Jesuítas no século XVI; as festividades chinesas; Camilo Pessanha; o ópio e a igreja de São Paulo, longamente descrita. O texto redesenha, através da cor local e da evocação histórica, os contornos da presença portuguesa na China desde 1557 até à Declaração Conjunta, bem como os costumes e as tradições dos chineses, adquirindo a obra um pendor também etnográfico. As fontes históricas portuguesas e chinesas (memoriais), os jornais ingleses (The Annual Register, 1772) e as narrativas literárias transcritas e referidas ao longo do romance, como os diários da estada de viajantes estrangeiros que “tudo observam pelo padrão exótico” – como os conde de Lapérouse (1787) e de Beauvoir (1867), as missivas de José Ignácio de Andrade, os relatos de William Dampier (século XVII) e Maurício Augusto Benyowsky (1772), os escritos de Blasco Ibañez e Madame Butterfly – funcionam como um tecido intertextual que transforma A Quinta Essência num palimpsesto histórico, que refere o tráfico de cules para a América e outros condicionalismos e episódios da presença dos “Feringis (portugueses)” no delta do rio das Pérolas. O narrador alude ainda a episódios da história e do folclore locais e à chamada teoria da ‘Fórmula de Macau’, do historiador K. C. Fok (Huo Qichang 霍啟昌), demonstrando conhecer a historiografia actual em torno de Macau, apresentando uma leitura alternativa, ou melhor, uma hipótese (pós-moderna) da história do enclave, caso o comércio da Nau do Trato não tivesse cessado em 1639, caso Ferreira do Amaral tivesse sido assassinado de outra forma, podendo William Shakespeare ter teatralizado a coragem do coronel Mesquita durante o episódio do forte de Passaleão caso tivesse desembarcado nessa altura no enclave. O ambiente ecológico dos jardins da cidade intensifica a construção do espaço da acção, tal como as referências ao Bazarinho, às “barcas de flores”, às procissões e a diversos topónimos simbólicos (Rua da Felicidade), concluindo o narrador, após um breve exercício metaficcional: “Aquilo que se chama ‘a singularidade de Macau’, a convivência não sei se só cerimónia de línguas e culturas, costumes e modos de pensar, serviu para marcar uma identidade. […] Em que não se sabe onde acaba o Ocidente e começa o Oriente, com os seus cheiros, comidas, amores[…]. Isso sim é a arte dos portugueses[…] num território próprio que funciona melhor do que os grandes monopólios e as grandes reservas de oiro ou de petróleo”. A representação do género, ou seja das condições feminina e masculina no território, acumula-se ao longo do romance, desde as referências à prostituição, à venda de filhas, aos pés enfaixados das mulheres chinesas e à vida dos tanká, bem como às especificidades da cultura macaense (o chá gordo), como se o espaço e o tempo evocados e descritos fossem os da velha Macau – “patamar da China” –, sendo o leitor transportado para a modernidade pelo movimento do jet-foil, a par das cadeirinhas e dos riquexós, que durante muito tempo foram um meio de transporte nobre na cidade e que remetem, quer o narrador quer o leitor, para a sensação do exotismo. O tempo da acção avança através de referências a acontecimentos como a inauguração do aeroporto e da Declaração Conjunta Luso-Chinesa, também abordada no romance, enquanto o progresso transforma os cheiros da cidade e a “festa de despedida” se aproxima. Terminado em 25 de Junho de 1999 e publicado nesse mesmo ano, o da transição do poder administrativo de Macau para a China, A Quinta Essência apresenta-se como um romance que tira partido (simbólico) de toda a história e alma de Macau ao apresentar e (re) inventar, numa atitude pós-moderna, a história do enclave a partir de fontes chinesas, portuguesas e de relatos de inúmeros viajantes ocidentais que admiraram a Cidade do Santo Nome de Deus ao longo dos tempos. Uma síntese ficcional da essência da partilha sino-portuguesa no Sul do Império do Meio. Bibliografia: BESSA-LUÍS, Agustina, “The Decorated Stone [A Pedra Pintada]”, in Review of Culture, n.° 9, (Macau, 1990), pp. 86-87; BESSA-LUÍS, Agustina, A Quinta Essência, (Lisboa, 1999); BESSA-LUÍS, Agustina, em entrevista a Maria Augusta Silva, Diário de Notícias, ano 138, n.° 48706, (31-07- 2002), pp. 42-43; BESSA-LUÍS, Agustina, O Livro de Agustina, (Lisboa, 2002); BESSA-LUÍS, Agustina, entrevista a Rogério Miguel Puga, notas manuscritas e inéditas, (Lisboa, 08-06- 2002); HELENO, José Manuel, Agustina Bessa-Luís: A Paixão da Incerteza, (Lisboa, 2002).

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Data de atualização: 2020/04/17