Informações relevantes
Data de atualização: 2020/07/17
Surgimento e mudança da Ribeira Lin Kai de San Kio
Macau e a Rota da Seda: “Macau nos Mapas Antigos” Série de Conhecimentos (I)
Escravo Negro de Macau que Podia Viver no Fundo da Água
Que tipo de país é a China ? O que disseram os primeiros portugueses aqui chegados sobre a China, 1515
Data de atualização: 2020/07/17
Em 1745, Fr. José de Jesus Maria, que terá concluído neste ano a sua Azia Sinica e Japonica, dá-nos as seguintes informações: “De 1735 a 1745, Macau perdeu em naufrágios mais de 11 navios. Em 1745 a população de Macau é de 5 212 cristãos e 5 000 chinas gentios. Compare-se este numero com as 44000 almas que aqui viviam um século antes.Os portugueses do reino são apenas 90; os homens e crianças 1 911 e as mulheres 3 301, parecendo uma cidade de mulheres”. (Cfr. António Martins do Vale, Os Portugueses em Macau (1750-1800). Degredados, ignorantes e ambiciosos ou fiéis vassalos d’El – Rei?, Macau, IPOR, 1997, pp. 220,221,230 e 231).
Azia Sinica e Japonica
BREDERODE, MARTINHO TEIXEIRA HOMEM DE (1866-?). O diplomata e poeta Martinho Teixeira Homem de Brederode nasceu em Lisboa no dia 15 de Abril de 1866. Depois de concluir o Curso Superior de Letras, iniciou a carreira diplomática em 1889, ocupando o lugar de adido na Legação de Portugal em Bruxelas. Após a sua passagem pela Direcção Geral dos Negócios Políticos e Diplomáticos, foi colocado na Legação portuguesa de Tânger, como 2.º Secretário, onde chegou em Janeiro de 1906. Acabou por exercer interinamente as funções de Encarregado de Negócios. A sua promoção a 1.º Secretário conduziu-o a Pequim, nomeado por decreto de 14 de Março de 1907. As suas obrigações em Tânger adiaram a sua ida para a capital chinesa, onde chegou no dia 2 de Dezembro desse ano, assumindo a gerência da Legação na qualidade de Encarregado de Negócios. Em Pequim, onde permaneceu até 1912, Homem de Brederode foi uma testemunha atenta ao desenrolar da vida política chinesa, num período marcado pelos acontecimentos que acompanharam o fim da dinastia Qing 清 e a proclamação da república em 1911- 1912. A complexidade da situação política chinesa e as suas implicações em Macau, colocaram-no em contacto permanente com o Governador do Território. A sua capacidade de análise e de interpretação sobre o período de crise política, económica e social que atravessou a China, pode ser testemunhada nos inúmeros ofícios e telegramas que remeteu para o Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal. Os lugares que ocupou e as missões que lhe foram confiadas foram sempre desempenhados com brio e empenho, tendo sido louvado, por portaria de 15 de Outubro de 1912, pela coadjuvação que prestou ao chefe da missão portuguesa no centenário da constituição de Cádiz. Homem de Brederode encontrava-se em Bucareste quando se aposentou em 1939. Foi agraciado com a Grã-Cruz da Ordem de Cristo, da Ordem da Coroa da Roménia, da Ordem de S. Sava da Jugoslávia e da Ordem do Duplo Dragão Imperial Chinês. Homem de Brederode foi Comendador das Ordens de Santiago da Espada e de S. Maurício e S. Lázaro de Itália. Para além de oficial da Legião de Honra (em França), Homem de Brederode foi ainda nomeado Cavaleiro da Ordem de Carlos III. Martinho Homem de Brederode, para além da sua actividade diplomática foi ainda um homem de letras tendo deixado escritas três obras poéticas Charneca (1981), Pó da Estrada (1898) e Sul (1905) e, ainda, um romance, A Noite de Amor (1894), este último sob o pseudónimo de “Marco Sponti”. Bibliografia: Annuario Diplomático e Consular Português Relativo aos Annos de 1910 a 1913, (Lisboa, 1913); Anuário Diplomático e Consular Português de 1925, (Lisboa, 1926); Anuário Diplomático e Consular Português de 1928-1929, (Lisboa, s.d.).
BREDERODE, MARTINHO TEIXEIRA HOMEM DE (1866-?)
AUDEN, W. H. (1907-1973). Durante a sua viagem pela China (1937-1938) aquando da guerra sinojaponesa o poeta inglês W. H. Auden (Wystan Hugh Auden) recolhe, na companhia de Christopher Isherwood, impressões para redigir Journey to a War (1939), acabando por visitar Hong Kong, em Fevereiro de 1938, bem como Macau, entrepostos comerciais que descreve comparativamente em dois sonetos em verso branco redigidos em Bruxelas durante o mês de Dezembro de 1938. O poema “Macao” apresenta uma imagem dupla do território, sendo o exotismo e o prazer sem peso do pecado uma das suas principais características, esterótipos facilmente associados ao Oriente pelo turista ou viajante ocidental. Enquanto a comercial Hong Kong não agrada nem a Auden nem ao sujeito poético, Macau, “a weed from Catholic Europe”, ganhou raízes entre as montanhas e o mar. O texto lírico, predominantemente descritivo, apresenta um policromático ‘retrato’ do enclave através das suas casas alegres, um “exótico fruto” que simboliza a singularidade das vivências portuguesa e chinesa da cidade. O olhar protestante do “eu lírico” demora-se nas imagens e estátuas de santos de estilo rococó que prometem salvação aos jogadores, enquanto igrejas se acomodam, lado a lado, com casas de prazer, materialização espacial do “comportamento natural” do ser humano que a fé pode perdoar, imagem esta continuada nos tercetos. Erotismo rima, portanto, com exotismo, através do campo semântico constituído pelos adjectivos utilizados, por entre vielas e edifícios da urbe, recordando os relógios e sinos das altaneiras torres católicas que o inferno poderá esperar os mais temerosos que se entregam aos mistérios do Oriente, rodeados por uma vivência também ocidental. Macau é, como revela o símile botânico utilizado no texto, caracterizado como um “enxerto cultural” ou erva daninha luso-sínica, advindo daí a sua singularidade e o facto de o território representar metaforicamente as fraquezas ‘da carne’ e as virtudes da natureza humana. A dimensão exotica assume no poema uma sugestiva proeminência que se repete no imaginário ‘inglês’ relativamente a Macau e que recompensa o viajante que se depara com a familiaridade da “infantil”, porque inocente, porta de entrada do Ocidente na China. Bibliografia: AUDEN, W. H., Collected Poems, introdução e notas de Edward Mendelson, (Londres, 1991 [1976]); BAKER, Donald C.; BAKER, Elizabeth D., “A Great English Poet on China, Hong Kong and Macao: W. H. Auden and a “Weed from Catholic Europe””, in Review of Culture, 2.ª série, n.º 25, edição inglesa, (Macau, 1995), pp. 241-248; CARPENTER, Humphrey, W. H. Auden: A Biography, (Londres, 1981); DAVENPORT-HINES, Richard, Auden, (Londres, 1995); PUGA, Rogério Miguel, ““Macao” e “Hong Kong” de W. H. Auden: Uma Abordagem Comparativista”, in Administração: Revista de Administração Pública de Macau, vol. 15, n.º 55:1, (Macau, 2002), pp. 325-338.
AUDEN, W. H. (1907-1973)
CLEVELAND, LUCY HILLER (1780-1866). Viajante, poetisa, autora de livros infantis, desenhadora, diarista, artista têxtil (1830-1865) e reformista social oriunda de Salem, Massachusetts e filha mais nova do major Joseph Hiller (1748-1814), relojoeiro que luta na Guerra Civil, e de Margaret Cleveland Hiller (1748-1804). Em 1803, o major Hiller muda-se, com a família, para Lancaster (Massachusetts), onde Lucy casa com o capitão William Lambert of Roxbury em Julho de 1806, enviuvando um ano depois, quando o marido morre na Holanda, em Agosto de 1807. Lucy regressa a Lancaster para viver com as suas irmãs mais velhas, Dorcas (1773-1850) e Mary (1779-1815), que haviam casado, respectivamente, com os irmãos Richard Jeffrey Cleveland (1773-1860) e William Cleveland (1777-1842), mercadores de Salem e que são primos em primeiro grau das mulheres, sendo estes casamentos estimulados de forma a preservar a riqueza e a influência das famílias locais. O pai de Lucy morre em 1814, seguindo-se-lhe a irmã Mary, no ano seguinte, servindo a primeira, viúva e sem filhos, como acompanhante de senhoras na sua família. Em 1816, Lucy casa com o cunhado viúvo, o capitão William Cleveland, tornando-se madrasta dos seus sobrinhos, prática comum entre os unitarians, segundo Harriett Low. O casal muda-se para Salem em 1821, sem nunca ter filhos. William dedica-se e novo ao comércio marítimo, enquanto a sua mulher escreve cerca de doze livros infantis. Em 29 de Outubro de 1828, Lucy e o seu enteado James Cleveland deixam Salem e, em 18 de Novembro de 1828, partem a bordo do Zephyr, para acompanhar o marido até Timor, onde este se desloca com o intuito adquirir sândalo para comercializar na China. A viagem dura cerca de um ano, terminando em 27 de Setembro de 1829. A viajante redige um breve diário da viagem e ilustra um sketchbook com duas dezenas de desenhos coloridos de Timor (7) e de Macau (13), onde visita a jovem Harriett Low, em 1829, desenhando e pintando, tal como George Chinnery e W. W. Wood, várias cenas do quotidiano macaense oito-centista, entre os quais “Apew” (Apun); o boy do lar da família Low; uma chinesa de pés enfaixados; uma mulher portuguesa a caminho da igreja, coberta pelo véu e acompanhada por um empregado; cules a carregar cadeirinhas aos ombros; um barbeiro e (três) jogadores chineses sentados no chão. De acordo com o seu diário, a cansativa viagem entre Timor e o enclave dura trinta e dois dias, chegando a diarista cansada à Rada de Macau em 12 de Outubro de 1829. A autora deixa de escrever até 8 de Janeiro de 1830, dia em que abandona Macau, observando-se portanto uma elipse na narrativa. Em 12 de Outubro de 1829, Harriett Low descreve, no seu diário, o primeiro encontro com Mrs. Cleveland, sua conterrânea, e com o seu marido, passeando com a recém-chegada, sua hóspede, pelas ruas de Macau, ouvindo-a tocar guitarra, observando jogos que esta lhe ensina e fazendo-lhe companhia devido à sua prolongada doença, enquanto o marido se desloca a Cantão, em negócios. Em 8 de Janeiro de 1830, o casal Cleveland deixa Macau, trocando Lucy correspondência com a jovem Low. Bibliografia: “Lucy Cleveland Papers” e “William S. Cleveland Papers”, Peabody Essex Museum: Phillips Library (Salem); CLEVELAND, Lucy, “Sketchbook”, cota: M1347, The Peabody Essex Museum, Phillips Library; CLEVELAND, Lucy, “Voyage of the Zephyr, 1829”, cota: MS 656 1829Z, The Pe¬abody Essex Museum, Phillips Library; CLEVELAND, Richard J., A Narrative of Voyages and Commercial Enterprises, (Cambridge, 1842); MARVIN, Reverend Abijah P., History of the Town of Lancaster, Massachusetts, (Lancaster, 1879); CLEVELAND, Edmund Janes; CLEVELAND, Horace Gillette (eds.), The Genealogy of the Cleveland and Cleveland Families, (Hartford, 1899); CARRICK, Alice Van Leer, “Playthings of the Past”, in Antiques, (Janeiro de 1922), pp. 10-16; PAYSON, Huldah Smith, Museum Collections of the Essex Institute, (Salem, 1978); LAHIKAINEN, Dean, In the American Spirit: Folk Art from the Collections, (Salem, 1994); RICHTER, Paula Bradstrees, “Lucy Cleveland’s ‘Figures of Rags’: Textile Arts and Social Commentary in Early-Nineteenth-Century New England”, in BARNES, Peter (ed.), The Dublin Seminar for New England Folklife. Annual Proceedings 1997 Textiles in Early England: Design, Production, and Consumption, (Boston), pp. 48-63; RICHTER, Paula Bradstrees, “Lucy Cleveland, Folk Artist”, in Antiques: The Magazine, (Agosto de 2000), pp. 204- 213; LOW, Harriett, Lights and Shadows of a Macao Life: The Journal of Harriet Low, Travelling Spinster – Part One: 1829- 1832 e Part Two: 1832-1834, 2 volumes, (Woodinville, 2002); PUGA, Rogério Miguel, “Macau e Timor em 1829: O Diário e os Desenhos Inéditos de Lucy Cleveland”, Oriente (Lisboa, (2006).
CLEVELAND, LUCY HILLER (1780-1866).
ABEEL, DAVID (1804-1846). De nome chinês Ya Bili 雅裨理, é, juntamente com Elijah Bridgman (1801-1861) e Samuel Wells Williams, um dos primeiros missionários norte-americanos a estabelecer-se na China. Oriundo de New Brunswick (Nova Jersey), Abeel estuda no Rutgers College e no Seminário Teológico dessa cidade, desenvolvendo o seu primeiro trabalho pastoral em Athens (Nova Iorque) durante dois anos. O jovem viaja, enquanto missionário da Dutch Reformed Church, para a China, em 1829, como capelão da Seaman’s Friend Society (em Whampoa), tendo o mercador norte-americano D. W. C. Olyphant pago a sua passagem e a de Elijah, por iniciativa do Dr. Morrison. Um anos depois da sua chegada ao Sul da China, Abeel é empregado pela American Board of Commissioners for Foreign Missioners. Por motivos de saúde, o missionário abandona Cantão, em 1833, rumo a Java, ao Sião e a Singapura, visitando ainda a Europa, a caminho dos Estados Unidos, onde encorajaria a realização de futuras missões na China, encontrando-se com Harriett Low, em Inglaterra a 22 de Julho de 1834, onde ajuda a formar a Society for Promoting Female Education in the East. Abeel publica The Claims of the World of the Gospel (1838); The Missionary Conversion of Jerusalem e descreve as suas viagens no Journal of a Residence in China, and the Neighboring Countries; from 1829 to 1833, bem como a sua estada em Macau. A surpresa reina na descrição do enclave cuja aparência europeia (Praia Grande) contrasta com a esterilidade dos territórios e das ilhas ciurcundantes. O autor refere a superfície irregular da urbe, rodeada de campos cultivados, montes, aldeias dispersas, cenários aquáticos, e cuja aparência muda de acordo com a perspectiva ou o local de onde é vista, surpreendendo o visitante. Quanto aos edifícios, a variedade e o tamanho são as suas características mais importantes, encontrando-se a maior parte do território ocupado por chineses. Relativamente à população, e de acordo com uma estatística recente de que o autor tem conhecimento, habitam na cidade cinquenta mil pessoas, das quais quarenta e cinco mil chineses, embora alguns informantes afirmem que a população não excede os trinta ou os trinta e cinco mil habitantes. Macau é ainda a residência das mulheres e famílias dos comerciantes estrangeiros que se deslocam anualmente para Cantão, existindo aí cerca de onze famílias inglesas e uma norte-americana. O viajante resume a história do estabelecimento dos portugueses em Macau desde as lutas destes contra os piratas do mar da China, sendo os primeiros acusados pelos chineses de terem “usurpado” o local. Quanto aos “locais de interesse”, o texto descreve os jardins e a Gruta de Camões, refere a evangelização dos Jesuítas e a construção de igrejas e de um seminário, de onde abrem “contactos com vários pontos do interior” da China, criticando o mau caminho que a propagação da fé tomara na China. No seminário de São José, outrora posse dos Jesuítas, educam-se jovens chineses, às custas do governo português, para serem ordenados e enviados para a China profunda. Como muitos outros visitantes protestantes Abeel estranha o elevado número de igrejas (12) e padres (40) existentes face ao reduzido número de habitantes católicos. O olhar do autor, nem português nem católico, leva-o a descrever alguns factos, a que chama de “superstições”, relatados por habitantes da cidade, nomeadamente a crença em torno do auxílio de Santo António à cidade aquando da invasão holandesa, pois o mesmo aparecera nos ares e derrotara os invasores, milagre que pode ter sido também obra de São João Baptista, uma vez que a batalha teve lugar no dia deste último santo. O governo do território oferece a Santo António uma festa anual que dura treze dias, criticando Abeel os excessos praticados durante a mesma. Também o jornalista norte-americano W. W. Wood refere a “superstição” relacionada com Santo António. O missionário continua a sua reflexão ‘protestante’ e critica a vivência católica ao descrever a procissão de Santo António. O texto refere ainda a existência de templos chineses e descreve o Templo de Á-Má, “uma forma grotesca de superstição pagã”, referindo os serviços religiosos do missionário Robert Morrison na casa deste último, em prol dos sobrecargas da Companhia das Índias inglesa. Abeel aborda assim um dos factores que afastam, em Macau, a comunidade portuguesa das comunidades de língua inglesa, a religião. Em 1842, o missionário visita, de novo, Malaca e outras localidades asiáticas e funda a Missão de Amoy, regressando, doente, aos Estados Unidos, em 1844, vindo a falecer, vítima de tuberculose, dois anos depois. [R.M.P.] Bibliografia: ABEEL, David, Journal of a Residence in China, and the Neighboring Countries; with A Preliminary Essay, on the Commencement and Progress of Missions in the World, (Nova Iorque, 1836 [1834]); ABEEL, David, The Missionary Convention at Jerusalem. Or, an Exhibition of the Claims of the World to the Gospel, (Nova Iorque, 1838); ABEEL, David et alii, “Early Missionaries in Bangkok”, in FARRINGTON, Anthony (ed.), The Journals of Tomlin, Gutzlaff and Abeel, 1828-1832, (Bangkok, 2001); KITTS, Charles R., The United States Odyssey in China, 1784-1990, (Lanham, 1991); LOW, Harriett, “Lights and Shadows of a Macao Life: The Journal of Harriet Low”, in HODGES, Nan P.; HUMMEL, Arthur W. (eds.), Travelling Spinster-Part Two: 1832-1834, (Woodinville, 2002).
Abeel, DAVID
José Inácio de Andrade nasceu no dia 2 de Novembro de 1780 em Santa Maria, Açores. Faleceu em Lisboa no primeiro dia do ano de 1863. Em Lisboa dedicou-se à vida política activa, tendo sido eleito vereador da Câmara Municipal de Lisboa em 1837. No biénio 1838-1839, Inácio de Andrade ocupou a Presidência da Câmara da capital portuguesa. Posteriormente veio a assumir o cargo de Director do Banco de Portugal. José Inácio de Andrade foi um homem do seu tempo, marcado cultural e ideologicamente por uma visão do mundo humanista e individualista, caracterizadora do pensamento liberal. Erudito e dedicado às letras, Inácio de Andrade escreveu em 1835 dois textos que foram publicados em Lisboa: Memória sobre a Destruição dos Piratas da China e o Desembarque dos Ingleses na Cidade de Macau e sua Retirada e Biografia de Rodrigo Ferreira da Costa. A sua ligação ao Oriente teve início nos primeiros anos de Oitocentos com um conjunto de viagens a Macau e à Índia como capitão de navios. Casou duas vezes e foi à sua primeira esposa, Maria Gertrudes de Andrade, que dirigiu as cartas que escreveu e que reuniu na obra Cartas Escriptas da India e da China, as quais constituem um conjunto de cem breves reflexões, publicadas pela primeira vez em dois volumes pela Imprensa Nacional, em 1843. Ao longo desta obra, o autor revela um conhecimento alargado sobre a China, adquirido através das suas viagens que o mantêm ligado ao Oriente durante vinte anos. Cem cartas recheadas de descrições e reflexões sobre o que ia observando e estudando, e que Inácio de Andrade dividiu em dois volumes. As cinquenta cartas que compõem o primeiro volume centram-se no início da sua viagem até à Índia, nalguns aspectos da civilização indiana, na viagem até Macau e à China e, finalmente, na milenar história chinesa. No segundo volume, composto pelas restantes cinquenta cartas, o autor lança um olhar sobre os diferentes aspectos que caracterizam a civilização chinesa, aproveitando para reflectir sobre outros temas. Estas reflexões ajudam-nos a compreender a sua linha de pensamento, com particular realce para as suas constantes comparações entre o Ocidente e as características do Império do Meio. As viagens realizadas por José Inácio de Andrade exerceram sobre o autor um natural fascínio, levando-o a enaltecer os aspectos mais positivos que foi encontrando no seu contacto com os povos e os lugares que visitou. Mantendo o quadro de valores civilizacionais e de referência do Ocidente visíveis na forma como aborda alguns temas, nas reflexões que elabora e nos autores que utiliza para criticar ou para servirem de suporte às suas análises (Adam Smith, Helvecio, Montesquieu, Voltaire, Abade Reynal, Hobbes, Fernão Mendes Pinto, Gaspar da Cruz, Jerónimo Osório, Tomé Pires, entre outros), Inácio de Andrade faz um esforço no sentido de valorizar o ‘outro’ face a si próprio. Não podendo deixar de sublinhar a erudição e a riqueza multidisciplinar que as Cartas Escriptas da India e da China ainda hoje nos revelam, importa destacar o modo como este autor coloca o seu racionalismo e os seus sentimentos ao serviço da civilização visitada, acabando por se render ao exotismo esmagador de um Oriente que, naquele tempo, ainda estava em grande parte por descobrir. Não obstante os limites que a obra revela, relativamente ao grau de profundidade e de precisão dos conhecimentos que nos transmite sobre as civilizações orientais, as Cartas constituem um objecto de estudo em si mesmas, pela riqueza do texto, pelos sentimentos que nos transmitem e pelas ideias que veiculam: o respeito e a admiração por outras civilizações, pelo diferente, base fundamental em que se alicerçou a secular presença portuguesa no Extremo Oriente. Bibliografia: DIAS, Alfredo Gomes, “As Cartas de José Ignacio de Andrade”, in Macau, n.° 1, (Macau, 2000), pp.78-88; ANDRADE, José Ignacio de, Cartas Escriptas da India e da China, (Macau, 1998).
ANDRADE, JOSÉ INÁCIO DE (1780-1863)
COATES, AUSTIN (1922-1997). Administrador colonial, diplomata, escritor, Austin Coates viveu os seus últimos anos em Portugal, onde morreu no dia 17 de Março de 1997, semanas antes de completar 75 anos de idade. A escolha da Rua das Horas da Paz, em Colares, Sintra, para última morada não foi um acaso na vida aventurosa deste aristocrata inglês, cidadão do mundo, que conheceu Portugal a Oriente e dedicou a essa dimensão da gesta parte da sua obra literária. Austin Francis Harrisson Coates nasceu em Londres a 16 de Abril de 1922; estudou na Stowe School, e em Paris. Filho do compositor Eric Coates, Austin desde novo acalentou a ideia de se tornar escritor, mas os seus planos seriam abruptamente interrompidos pelo eclodir da II Guerra Mundial. Mobilizado pela Royal Air Force Intelligence, começa por prestar serviço em Londres, partindo em 1942 para a Índia, onde privou com Mahatma Ghandi (durante cerca de um mês, em gozo de licença militar, acompanhou o profeta da paz nas suas deambulações por um continente em plena ebulição). Ainda nos Serviços de Informação da RAF, cumpre comissões na Birmânia (Myanmar), Singapura e Indonésia, até 1947. Dois anos depois, ingressa na administração colonial britânica, tendo sido indigitado Secretário Colonial Adjunto e colocado em Hong Kong. É nesta colónia britânica que passa a dedicar-se à escrita, e surgem as primeiras obras: Invitation to an Eastern Feast e Personal and Oriental. A sua obra mais famosa, Myself a Mandarim (1967), seria também inspirada pelas vivências no último posto britânico do Oriente, concretamente do período em que desempenhou os cargos de administrador civil e magistrado nos Novos Territórios, entre 1953 e 1955. Segue-se o período malaio: de 1957 a 1962, exerce funções de magistrado, diplomata e administrador colonial em Sarawak, Penang e Kuala Lumpur. Em 1962, abandona a administração britânica e, de regresso à sua Londres natal, dedica-se a tempo inteiro à escrita, produzindo obra em diversos géneros, da novela à ficção histórica; das memórias à biografia, de que se destaca, neste último género, o seu livro de maior fôlego, Rizal: Philippine Nationalist and Martyr (1968). Macau, que conhecera numa tarde cálida do início dos anos 1950, ocupa parte relevante do seu labor literário. Era a Macau de Gonzaga Gomes e Jack Braga, com quem priva na célebre tertúlia do Hotel Riviera: nessa altura, havia 27 carros e o ‘dia europeu’ não começava antes das 11 da manhã. Do convívio com a intelectualidade e as famílias tradicionais macaenses, parte para a investigação ao passado do enclave português, e dessa viagem resultam obras incontornáveis como A Macao Narrative (1978) e City of Broken Promises (1967) – em que mistura, com mestria literária, a realidade e a ficção (embora tais devaneios lhe mereçam críticas dos puristas da verdade histórica). Em 1966, depois de quatro frios invernos na Velha Albion, volta a Hong Kong, fixando ali residência para os 27 anos seguintes – durante os quais se desloca amiúde a Macau, hospedando-se, invariavelmente, no Hotel Bela Vista – onde produziu boa parte da sua obra literária. Entretanto, em 1974, faz uma viagem exploratória a Portugal, à procura de uma alternativa mais amena aos verões sufocantes de Hong Kong. Mas, 10 dias depois de ter deixado Lisboa, dá-se o 25 de Abril, e o Grande Oficial Cavaleiro de Sua Majestade, que presenciara o declínio do império colonial britânico na Índia, Malásia e Singapura, decide não trocar a sua casa na Upper MacDonald Road, sobranceira a Central, pela perspectiva de viver novas convulsões revolucionárias, e volta ao Extremo Oriente. Só duas décadas depois, a partir de 1993, se cumpre o sonho de acabar os seus dias na serra de Sintra, no país que tem o povo mais profundamente cosmopolita do mundo, como disse um dia Austin Coates, inveterado apreciador de vinhos do Dão e charutos havanos.
COATES, AUSTIN (1922-1997)
BRASSEY, LADY ANNA ALLNUT ou BRASSEY, LADY ANNIE (1839-1887). Baronesa inglesa (née Allnut), casada com Lord Thomas Brassey, economista político e governador do estado de Victoria (Austrália) entre 1883 e 1885. A família Brassey parte em 1876, no iate Sunbeam, para uma viagem à volta do mundo que duraria onze meses, e Lady Brassey é autora do popular diário dessa mesma viagem Around the World in the Yatch ‘Sunbeam’ our Home on the Ocean for Eleven Months (1878), ilustrado por A. Y. Bingham. A família visita Macau, partindo de Hong Kong no Flying Cloud e a diarista descreve a localização e o aspecto geral do “primeiro estabelecimento na China, que pertence aos portugueses, “outrora uma cidade agradável, com edifícios esplêndidos”. Curiosamente, a autora justifica o aspecto desolado da urbe e a ausência de mercadores com o facto de Macau se situar na rota dos tufões e com o fim do tráfico dos cules, retirando os lusos rendimento dos jogos como o fan-tan 番攤, descrito pela viajante. A ampla mansão onde a família pernoita é minuciosamente descrita, bem como a mobília da mesma, incluindo os mosquiteiros. Durante o passeio de cadeirinha pela cidade até ao farol da Guia, Anna conclui que Macau tem um aspecto totalmente português, com habitações coloridas e uma boa guarda militar, imagem complementada pelo som dos sinos das inúmeras igrejas do território, “estância favorita dos residentes europeus de Hong Kong viciados no jogo.” O texto sugere ainda os sons da Macau nocturna, nomeadamente os tambores dos guardas que passam de hora a hora com duas batidas, intervaladas em meio minuto. Antes de abandonar o enclave a família diverte-se durante um passeio de junco chinês, rumo à ilha de Chock-Sing-Toon, visitando ainda o Jardim de Camões, as ruínas de São Paulo e as demais deixadas pelo tufão de 1874. Bibliografia: BRASSEY, Lady Anna, A Voyage in the Sunbeam, our Home on the Ocean for Eleven Months, (Londres, 1879); BRASSEY, Lady Anna, In the Trades, the Tropics & the Roaring Forties, ilustrações de G. Pearson, (Londres, 1885); BRASSEY, Lady Anna, Lady Brassey’s Three Voyages in the Sunbeam, (Londres, 1887); BRASSEY, Lady Anna, Around the World in the Yatch ‘Sunbeam’ our Home on the Ocean for Eleven Months, ilustrado por A. Y. Bingham, (Nova Iorque, 1889); MICKLEWRIGHT, Nancy, A Victorian Traveler in the Middle East: The Photography and Travel Writing of Lady Annie Brassey (Burlington, 2002).
BRASSEY, LADY ANNA ALLNUT ou BRASSEY, LADY ANNIE (1839-1887)
CAMÕES, LUÍS VAZ DE (1517 ou 1524-1579). Desde muito cedo se consolidou a tradição da presença do Poeta em Macau. Contudo, no século XX, a historicidade do facto começou a ser posta em causa, debate que se mantém entre os que defendem aquela e os que sustentam não passar de um mito historiográfico. No entanto, recentes descobertas e pertinentes análises exegéticas parecem vir reforçar a tese da historicidade: – 1. O primeiro indício da presença de Camões em Macau é dado pelo próprio vate, na estância 128 do Canto X do seu poema épico Os Lusíadas: “Este [Mecom] receberá, / plácido e brando, / No seu regaço os Cantos que molhados / Vêm do naufrágio triste e miserando, / Dos procelosos baxos escapados, / Da fome, dos perigos grandes, quando/ Será o injusto mando executado / Naquele cuja lira sonorosa será mais afamada que ditosa”. Tratando-se de factos vindouros relativamente ao feito principal (a viagem de Gama à Índia) e à própria narrativa de Vasco da Gama ao rei de Melinde, Camões coloca neste Canto X uma ninfa, Tétis, a mostrar ao navegador, de um alto cume, o Universo descoberto e a descobrir pelos Portugueses, e a vaticinar-lhe as terras de África e da Ásia que os Portugueses virão a possuir, nomeando todos os grandes ilustres e os lugares teatro de seus feitos. Como em numerosíssimos outros versos, quer da lírica, quer do poema épico, a estância transcrita, que fala de um naufrágio na latitude do Camboja, tem claro pendor autobiográfico. Qual a importância de um naufrágio, no meio de tantas centenas, ocorridos então e desde sempre na gesta oriental dos lusíadas, senão porque dele foi vítima o próprio Poeta e porque a ele estão associados duas importantes relações de causa e efeito, a saber, a salvação dos ‘Cantos’ e um ‘injusto mando’? Para além, claro, da própria sobrevivência do Vate e do seu canto universal. Ora o Camboja situava-se em região vizinha da China e o Mecom é um rio que desagua já em pleno mar do Sul da China; ter navegado por aquela parte do litoral asiático implica uma viagem de Camões de vinda ou de ida para as ‘partes da China’ onde os portugueses estavam estabelecidos. Inserto na descrição das futuras viagens de descoberta e conquista dos portugueses no Índico e Pacífico (não obstante numa descrição de direcção Sul-Norte), o episódio autobiográfico do naufrágio terá sido no regresso de Macau, e nele terá perdido os bens ‘das partes’, de cujo espólio era responsável perante a Casa dos Contos em Goa. Na época em que Camões terá estado em Macau (entre 1563 e 1566), já os portugueses frequentavam os portos da baía de Cantão com à-vontade, desde 1554, pelo menos, e, naquela época, já Macau estava consolidado como estabelecimento único dos portugueses nas ‘partes da China’; em 1563, ‘já Macau era uma cidade’, com, em 1564, uma população de 600 portugueses, a que se somavam os seus escravos e criados, justificando-se plenamente uma provedoria dos defuntos, por motivos bem mais sólidos do que Liampó e Chincheo, que já a tinham. O vaticínio da ninfa, obviamente, está hipotecado ao conhecimento que Camões tem, na época em que escreve, de até onde chegaram esses valerosos Portugueses; ou, tendo em vista a preocupação de Camões de falar do que sabe e conhece em primeira mão, de até onde ele próprio chegou e viu. Por isso, mais adiante (X, 131, 1-2), depois de acabar de descrever a Ásia e a China – sugerindo fortemente que o Poeta evoca um caminho por si percorrido até chegar ao Império do Meio – termina aí a sugestão da viagem feita e põe a ninfa a dizer: ‘Inda outra muita terra se te esconde / Até que venha o tempo de mostrar-se…’. Claramente, o Japão; um lugar a que se vai, a partir de um lugar onde se está. E era, efectivamente, já nessa altura, a partir de Macau (donde não terá passado) que a famosa nau do trato (o kurofoné, o barco negro para os japoneses, por causa da cor de que era pintado) partia para o Japão. Daí trazia prata, de elevada qualidade, essencial para o comércio chinês da seda, da porcelana, e até do ouro. E foi isso que Camões cantou, demonstrando um conhecimento muito preciso deste negócio da prata, principal exportação do Japão: ‘Mas não deixes no mar as Ilhas onde / A Natureza quis mais afamar-se: / Esta, meia escondida, que responde / De longe à China, donde vem buscar-se, / É Japão, onde nace a prata fina, / Que ilustrada será co a Lei divina.’ (X, 131, 3-8). Já Boxer salientaria: ‘Se foi a procura de Cristãos e Especiarias que trouxe os portugueses à Ásia, em primeiro lugar, pode-se dizer que foram os Cristãos e prata as duas estrelas condutoras que em conjunto os guiaram nas suas viagens ao Japão por quase um século’, desde a chegada a Tanegashima, em 1543. Camões pode ter visto partir de Macau a Nau do Trato em direcção ao Japão, assistido ao carregamento no cais de Patane das sedas e do ouro chinês; e assistido, na estação seguinte, à sua chegada, a descarregar a prata em barra destinada a Cantão. – 2. A isto se liga a tradição da ‘Gruta’ de Camões. É que o cais de Patane, que os comerciantes naquela época utilizavam (e que deu origem ao primeiro bairro de Macau) está justamente no sopé do outeiro coroado de penedos que a tradição desde cedo estabeleceu ser frequentada pelo Poeta, aí desfrutando das boas vistas e dos bons ares. Ora, em 1911, o bibliotecário da Ajuda, Dr. Jordão de Feitas, descobriu um manuscrito, do século XVIII, com uma relação de bens de raiz do Colégio de Macau, pertencente aos Jesuítas, que identifica o ‘chão do campo dos patanes’, o mesmo ligado ao Poeta, como os ‘penedos de Camões’, apurando-se ser o lançamento original de, pelo menos, e seguramente, de entre 1632 e 1636 (data em que foi reitor do dito Colégio o padre António Cardim) ou mesmo, com probabilidade, de 1617 (data em que o livro, donde foi transcrito o lançamento, foi iniciado). Camões não era desconhecido dos Jesuítas, que, cedo chegando a Macau, aqui construíram a sua primeira residência em 1565 (foi jesuíta o primeiro bispo de Macau com residência efectiva, em 1568, na sede episcopal) e a sua primeira escola em 1572, esta elevada a Colégio em 1594, com o nome de S. Paulo. Era nos bens de raiz deste que figurava o chão do campo dos patanes, a que deram o nome de ‘penedos de Camões’. A descoberta de Jordão de Freitas veio trazer consistência e rigor histórico à tradição secular, fundada nos biógrafos e cronistas, porque, afinal, fundada na própria memória coeva do povo de Macau, pois não terá sido sem fundamento que o local era conhecido por ‘penedos de Camões’. É sabida a ‘importância da leitura no quotidiano ultramarino dos portugueses residentes ou estantes em paragens orientais e a rapidez da difusão de obras impressas’ entre a Península e o Oriente. Ora, após a publicação do poema épico em 1572, e sobretudo depois da morte, que lhe redobrou a fama, mais a mais com a opressão espanhola a acirrar a nostalgia da independência e sabendo-se de que lado havia estado o Poeta na crise sucessória de 1578-80, rapidamente Os Lusíadas se transformaram numa espécie de evangelho nacionalista. Para os Jesuítas, que melhor forma de resistência do que perpetuar o nome do autor numa das suas propriedades, aquela à qual estava ligada a memória da sua estada em Macau? – 3. Na linha da historicidade, e será o terceiro dos indícios de que falámos, existe outra das descobertas do século XX, a reforçar a atestação documental da tradição: o Cancioneiro de Cristóvão de Borges, colectânea manuscrita de poemas, ao gosto da época, a maioria de Camões, feita pelo desembargador do Paço desse nome, descoberto e publicado pelo professor da Universidade da Califórnia Arthur Lee-Francis Askins em 1979. Nesse cancioneiro podemos ler a 1.ª parte (poema do amor profano, constituída por 200 versos) de umas redondilhas, Sobre os rios que vão, encimadas da seguinte epígrafe: ‘De L. de C. a sua perdição na China’. E, ademais, com data precisa: 1578, o terminus ad quem da colectânea. Ou seja, ainda em vida do Vate. Ora, este desembargador e amante das letras não era uma pessoa qualquer. O Desembargo do Paço era o principal órgão da administração central. Era, por excelência, o Conselho Régio, presidido pelo próprio rei, e os seus membros tinham automaticamente carta de conselheiros. Tinham, além disso, assento na ‘mesa principal’ da casa da justiça, juntamente com o Regedor das Justiças, à qual o rei em regra estava presente. Cristóvão de Borges Peguas de Meireles, natural de Miranda do Douro, antigo juiz dos órfãos em Mirandela, e em Lisboa desde 1567, deve seguramente ter conhecido Camões, ou no mínimo obtido toda a informação sobre ele, pelo menos a atinente à ‘capitulação’ com que vinha de Goa e que sobre ele pesava quando chegou a Cascais em 7 de Abril de 1570. Esta ‘capitulação’, ou artigos de acusação, está relacionada com a perda dos bens ‘das partes’ (viúvas e órfãos dos defuntos), a ambos se referindo o seu biógrafo Pedro de Mariz, e com o “injusto mando executado” a que se refere Camões. Se não chegou a ser julgado e absolvido do crime de peculato no cargo orfanológico, terá sido perdoado pelo Desembargo do Paço, pois justamente a concessão de perdões vinha em primeiro lugar no elenco das cartas de privilégio que era uma das respectivas competências em matéria de graça. Num caso como noutro, Cristóvão de Borges sabia do que falava: ‘De L. de C. a sua perdição na China’. China, entre 1563 e 1566, já só significava Macau. E ‘perdição’, dito por um magistrado, só pode ter ressonância judicial, aliás em consonância com a ‘capitulação’ com que veio do Oriente. E só faz sentido admitir ter sido absolvido ou perdoado, pois só isso é compatível com a curta duração que vai da sua chegada a Cascais, em Abril de 1570, e a data em que se sabe já estar o poema épico na impressão (23 de Setembro de 1571), sabendo-se as várias formalidades a que o Poeta teve de se sujeitar para a impressão da obra (licenças várias, leitura do poema aos censores, alteração de textos por estes imposta, etc.). Não é de enjeitar também a influência no rápido sucesso deste caso do Regedor das Justiças, o mais alto magistrado do país, superior hierárquico de Cristóvão de Borges, com quem o Poeta revelou uma estranha familiaridade, até hoje inexplicada. – 4. Mas a revelação do Cancioneiro de Cristóvão de Borges veio caucionar duas outras fontes documentais da presença de Camões na China: uma, o Cancioneiro de Madrid, onde as mesmas redondilhas “Sobre os rios que vão…” aparecem sob esta epígrafe: ‘O psalmo super flumina, do mesmo poeta o qual compôs, indo para a China no qual caminho fez um grande naufrágio’; a outra, o anónimo comentário feito em 1584 à margem da pág. 187 da edição desse ano de Os Lusíadas: “começando a fortuna fauorecello, & tendo algum fato ja de seu, perdeose na viagem que fez pera a China”. Esta mesma anotação acrescentava que o Poeta compusera “aquelle cancioneiro, que diz: Sobre os rios que vão per Babylonia” na ocasião do naufrágio. Em Camões, Babilónia é Goa, e Sião a pátria longínqua cujas lembranças chorou ‘sobolos rios’. Uma segunda nota, comentando outra estância, esclarecia que Camões aportara “a este reino de Cambaia’ [erro evidente por Camboja], depois de se ter “perdido” na “viagem que fez à China”. – 5. Outros indícios da estada de Camões em Macau são as referências que Pedro de Mariz faz na biografia do Poeta, publicada na edição de 1613 de Os Lusíadas. Mariz, que tinha 30 anos no ano em que Camões morreu, dá conta de o Poeta ter sido provido “Provedor mòr dos defunctos aas partes da China” por um vice-rei (não se equivocou, mas omitiu o nome), tendo perdido “o das partes” no naufrágio que o perdeu, “de que elle faz menção na octava 128 do Cãto 10”, sendo a sugestão do naufrágio a de ter ocorrido no regresso da China. É ele quem fala da prisão do Poeta na Índia. Na mesma edição de Os Lusíadas são publicados uns comentários de Manuel Correia, que teria redigido a pedido de Camões e por este sido instado a publicá-los. Tendo morrido antes de o fazer, os papéis foram a leilão, onde Mariz os comprou e publicou. Aí se fazem referências ao naufrágio no regresso da China e à prisão pelo governador do Estado da Índia, “pela fazenda dos defunctos, que elle trazia a seu cargo, porque foy à China por Prouedor mor dos defuntos”. Se, como já foi demonstrado pela historiografia, o cargo de provedor-mor é altamente improvável que tenha sido exercido pelo Poeta, já o de simples provedor, ou de provedor-menor, se especialmente designado para Macau, não se desarticula daquilo que hoje se sabe já ser Macau a partir de 1560 e das interpretações do que significarão ‘o das partes’, o ‘injusto mando’, a ‘capitulação’ com que veio do Oriente e, sobretudo, porque é a esse cargo que se refere o cronista Diogo do Couto. – 6. Na verdade, e finalmente, Couto (c. 1542-1616) é uma das mais credíveis fontes da gesta oriental dos portugueses, o continuador das Décadas da Ásia iniciadas por João de Barros. E, para além da sua autenticidade, dá-se a circunstância de Couto se contar entre os amigos do ‘Príncipe dos Poetas do seu tempo’. Tendo chegado à Índia em 1559, logo aí terá conhecido o Poeta, pois quando o encontra em 1569 na Ilha de Moçambique trata-o como a um velho amigo e companheiro. E do testemunho de Couto, deixado na versão extensa da Ásia – Década VIII, ficamos a saber que Camões viajara para a China como “provedor dos defuntos” em tempos do governador Francisco Barreto (1555-1558), mas fora-se “perder na costa de Sião, onde se salvarão todos despidos”, donde conseguiu escapar “com as suas Lusiadas como elle diz nellas”. Couto era um homem meticuloso, que desde cedo se tornou coleccionador de materiais históricos, recolhendo de forma sistemática elementos relacionados com a gesta oriental dos portugueses e dispondo dos seus próprios elementos de arquivo, ‘fragmentos’, e ‘lembranças’, como ele próprio afirma. As memórias e as informações orais tiveram sempre uma grande importância nas fontes de Couto, que ouvia toda a gente, procurava pessoas e falava com testemunhas de acontecimentos, e até o inimigo capturado buscava na prisão para registar a versão dele; o que denota bem a sua preocupação pela verdade. Ora Couto teve oportunidade de conviver e conversar na ilha de Moçambique com o Poeta, dele saber das suas ocupações poéticas (por ele sabemos que Camões trabalhava “em hum livro que hia fazendo, que intitulava Parnaso de Luiz de Camões, livro de muita erudição, doutrina e filosofia, o qual lhe furtáram”), dele cuidou e, com outros compatriotas, com quem se fintou, fez embarcar no Santa Clara o Poeta, com quem viajou, de Novembro de 1569 a 7 de Abril de 1570, quando aportaram a Cascais (uma vez que em Lisboa grassava a peste grande). Teve muito tempo para dele ouvir, em primeira mão, a sua narrativa. E provavelmente repetidas vezes, ao longo da viagem de vários meses, de regresso à Pátria. – 7. Infelizmente, a biografia de Camões esteve muitos anos sujeita à manipulação dos herdeiros dos Noronhas e dos Andrades da Anunciada, para esconder os amores do Poeta pelas duas damas da casa de Linhares, a ama (D. Violante, mulher do amo D. Francisco de Noronha, 2.º conde de Linhares) e a filha (D. Joana de Menezes), substituindo o nome de Violante pelo de Catarina e o de Joana pelo de uma moça chinesa, tentando tudo para que a verdade sobre esse e outros episódios da vida do Poeta com ele relacionados ficasse esquecida. O episódio da presença de Camões em Macau acabou por sofrer com isso. O furto da Década VIII, como o do Parnaso de Luiz de Camões, como outras falsificações que a historiografia atesta, foi só mais um desses golpes baixos a que aqueles deitaram mão para proteger o prestígio da poderosa casa fidalga. Também alguns erros, comuns nessa época (cronistas, impressores, revisores, chancelarias, todos os cometeram), contribuiram para obnubilar, durante muito tempo, a verdade sobre a vida do Poeta. Até Couto, ou o seu secretário por ele, ao reescrever a Década VIII em 1615, um ano antes da morte, menciona a nomeação de Camões para o cargo de provedor dos defuntos como em tempos do governador Francisco Barreto, no lugar do vice-rei D. Francisco Coutinho (10.1561-28.2.1564, data da morte). Também Mariz faz uma errada referência, provavelmente não inocente, na edição de 1613: é que não foi o governador Francisco Barreto quem deu a Luís de Camões voz de prisão na Índia, mas D. Antão de Noronha (1564-1569), um vice-rei. E é justamente a um vice-rei, sem o nomear, que Manuel Correia nos seus comentários atribui a voz de prisão (embora noutro passo diga ter sido o governador Francisco Barreto). Detectamos nos biógrafos e cronistas contemporâneos do Poeta um como que querer-e-não-querer dizer a verdade, mas, sem a coragem de a assumir, deixando pistas para lá chegar. Mas Mariz também cometeu erros inocentes: enganou-se no ano de chegada de Camões a Lisboa: 1569 por 1570. E muitos outros podem ser indicados. Por junto e atacado, podemos fixar entre 1563 e 1566 o período durante o qual Camões esteve em Macau; o primeiro porque ainda nesse ano, e na Índia, compôs uma elegia à morte do fidalgo D. Telo de Menezes, então ocorrida;o segundo porque o cargo de provedor dos defuntos era trienal, embora, com muita probabilidade, a função não tenha sido exercida até final. Por uma vez, e por tudo o que ficou dito, a tradição ganhou foros reforçados de autenticidade. Bibliografia: Askins, Arthur Lee-Francis, The Cancioneiro de Cristóvão de Borges (Lisboa, 1979); Cruz, Maria Augusta Lima, Diogo do Couto e a Década 8.ª da Ásia, 2 vols., (Lisboa, 1994); Ferreira, Joaquim, Camões – Dúvidas e Acertos, (Porto, 1960); Loureiro, Rui Manuel, Fidalgos, Missionários e Mandarins – Portugal e a China no Século XVI (Lisboa, 2000); Loureiro, Rui Manuel, “Camões em Macau – Um Mito Historiográfico”, in Revista de Cultura, n.º 7, (Macau, 2003); Ribeiro, Eduardo A. Correia, “Camões – Um Poeta na Periferia de Dois Impérios”, Ponto Final, (Macau, 2006); Saraiva, José Hermano, A Vida Ignorada de Camões – Uma História que o Tempo Censurou, (Mem Martins, 1995); Teixeira, Padre Manuel, Camões Esteve em Macau, (Macau, 1999).
CAMÕES, LUÍS VAZ DE (1517 ou 1524-1579)
Personagem: | Conceição, Deolinda do Carmo Salvado da, 1913-1957 |
Tempo: | Época da República entre 1911 e 1949 |
Após o estabelecimento da RPC em 1949 até 1999$ |
Fonte: | Dicionário Temático de Macau, Volume I, Universidade de Macau, 2010, p. 394. ISBN: 979-99937-1-009-6 |
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